1920 
                - Jogos Olímpicos da Antuérpia
                PARTE I
              1.Criação 
                do Comitê Olímpico Brasileiro
                Embora fosse reconhecido oficialmente somente em 1935, a criação 
                do Comitê Olímpico Brasileiro ocorreu em 8 de junho 
                de 1914, no Rio de Janeiro, sendo um marco na História 
                do Esporte Brasileiro. Seu primeiro presidente, o maranhense Fernando 
                Mendes de Almeida, juntamente com outros membros do comitê 
                não mediram esforços apoiando a ida da delegação 
                brasileira aos Jogos Olímpicos da Antuérpia, em 
                1920. No entanto, a Confederação Brasileira de Desportos 
                era a entidade responsável pelo esporte em geral no Brasil, 
                mais tarde cederia a vez ao COB.
              2.Seleção 
                e preparativos da equipe brasileira
                Por intermédio do relatório do Dr. Afrânio 
                Antônio da Costa, Chefe da equipe de tiro é possível 
                imaginar as dificuldades que o COB e a CBD tiveram para selecionar, 
                preparar e inscrever as diversas equipes, como tiro, remo, water-pólo, 
                natação e saltos ornamentais nos Jogos Olímpicos 
                da Antuérpia. As dificuldades foram, sobretudo de ordem 
                estrutural, técnica e econômica. 
              Na 
                época os atletas, de modo geral, contavam com o descrédito 
                e a incompreensão de parte significativa da “intelectualidade 
                brasileira”, que atacavam o desporto pelos jornais e revistas, 
                vendo nele “uma ameaça à juventude e à 
                sua formação”, prestando-se mais aos “desocupados 
                e vagabundos”. Por outro lado, inúmeros colaboradores 
                conscientizados do valor do esporte, apoiaram nesse período 
                difícil a nossa equipe, mediante doações, 
                como foi o caso do Sr Faustin Havelange, proprietário da 
                casa de armas Laporte e pai do famoso desportista e dirigente 
                João Havelange, ex-presidente da FIFA.
              Inegavelmente 
                o Tiro Esportivo recebeu um valioso apoio do Exército Brasileiro, 
                por intermédio da Diretoria Geral do Tiro de Guerra, colaborando 
                com os torneios seletivos e provas preparatórias, além 
                de alojar os atiradores civis e militares de outros Estados.
              Após 
                ter sido feita a seleção, nossa equipe ficou assim 
                constituída:
                • Capitão da equipe (chefe da equipe) –Dr. 
                Afrânio Costa 
                • Equipe de pistola livre: Afrânio Costa; Sebastião 
                Wolf; Dario Barbosa; Fernando Soledade e Tem Guilherme Paraense.
                • Equipe de revólver: Ten Guilherme Paraense; Ten 
                Demerval Peixoto, Sebastião Wolf; Fernando Soledade e Ten 
                Mário Maurity.
              3.Viagem 
                da Delegação Brasileira
                “A delegação brasileira seguiu para a Europa 
                no dia 01 de julho de 1920, sob a chefia do Dr. Roberto Trompowsky, 
                a bordo do navio Curvelo, pertencente ao Loyd Brasileiro. Deixava 
                atrás de si, as maledicências dos descrentes e dos 
                invejosos, que se referiam às aspirações 
                da equipe, da seguinte forma”: 
                - “Não vão arranjar nem pro bife” 
              Sobre 
                o navio e a viagem, Afrânio Costa fez os seguintes comentários:
                “O Curvelo estava longe de ser um transatlântico de 
                luxo. Tratava-se de um navio de 3ª classe, sem o mínimo 
                conforto, com seus camarotes mais se parecendo com uns cubículos, 
                sem ar, sem mobiliário e ainda acima de tudo sem água. 
                Diante disso, os atletas foram ao comandante Reis Júnior 
                e pediram para dormir no bar, pois era mais amplo e mais arejado 
                do que os camarotes. O comandante logo acedeu, porém, com 
                a condição de que só poderiam utilizá-lo 
                como dormitório, após a saída do último 
                freguês do bar. Após arranjarem uns cobertores, todos 
                fizeram a viagem dormindo no chão.
              No 
                dia da chegada à Ilha da Madeira, Reis Júnior informou 
                ao Dr. Trompowsky que o Curvelo somente chegaria à Antuérpia 
                no dia 5 de agosto. Entretanto, de acordo com as últimas 
                notícias do Comitê, as provas de tiro deveriam ter 
                início a 22 de julho. Diante desse impasse, o Dr. Trompowsky 
                telegrafou ao Presidente do CBD pedindo remessa urgente de quantia 
                necessária ao prosseguimento da equipe de tiro por terra, 
                a partir de Lisboa. Enviou, também, outro telegrama ao 
                Embaixador do Brasil em Portugal, solicitando reservar passagens 
                no comboio internacional.
              Ao 
                chegar em Lisboa, nossa delegação foi informada 
                de que os nossos recursos não haviam chegado. Graças 
                ao Embaixador Belfort Ramos, que tomou todas as providências 
                e adiantou a importância necessária à aquisição 
                das passagens, a equipe de tiro pode prosseguir de trem para Antuérpia.
              Já 
                em Antuérpia, essa equipe recebeu do Ministro Barros Moreira 
                a importância de 2.000 fr para a compra de armas e munições, 
                pois, tinha sido roubada em Bruxelas em alvos e quase toda a munição 
                38”.
              A 
                aventura dessa equipe não terminava aí, na cidade, 
                sede dos Jogos. O local designado para as provas de tiro, situava-se 
                a 18 km de Antuérpia, no Campo de Beverloo, área 
                destinada ao campo de manobra do exército belga.
              Foi 
                com esse estado de corpo e espírito, em que os nossos atiradores, 
                sem dormir e mal alimentados, debilitados ainda mais pelo frio, 
                chegaram à Beverloo, a 26 de julho, ao meio-dia”.
              4. 
                Escolha da cidade de Antuérpia para sediar os VIII Jogos 
                A História dos Jogos Olímpicos foi sempre traçada 
                com muito respeito aos povos e aos atletas. A VII Olimpíada 
                estava prevista para ser realizada em agosto de 1916 na cidade 
                de Berlim, porém foi suspensa em face do grande conflito 
                que envolveu muitas nações e que enlutou milhões 
                de famílias. A I Grande Guerra interromperia drasticamente 
                a série de Jogos, além dos demais eventos desportivos 
                internacionais.
              Durante 
                os anos de 1914 a 1918 os estádios, as pistas de atletismo 
                e os estandes permaneceram fechados ou vazios. Milhares de atletas 
                forma convocados pelo Serviço Militar de seus países, 
                para lutarem nos diversos “fronts” espalhados por 
                toda a Europa. 
              Por 
                ironia do destino a Guerra iria colocar frente a frente, alguns 
                dos melhores atiradores da época, campeões de seus 
                países. Dessa feita, não mais como simples concorrentes 
                a um título mundial, mas como inimigos, em decorrência 
                do Estado de Guerra existente entre seus países.
              Vários 
                desses ex-campeões não mais voltariam a disputar 
                as alegres provas domingueiras em seus clubes de tiro, por terem 
                tombado no “campo de honra”, conforme os relatos da 
                revista francesa especializada em Tiro – “Le Tir National”.
              Assinada 
                a paz, o movimento olímpico foi retomado pelos países 
                vencedores, tentando através do esporte, cicatrizar as 
                feridas causadas pela Guerra. Não obstante, a Alemanha 
                e a Áustria não foram convidadas para a Olimpíada 
                da Antuérpia. 
              O 
                Comitê Olímpico resolveu manter a continuidade da 
                numeração dos Jogos Olímpicos, como se não 
                houvesse interrupção provocada pela I Guerra Mundial. 
                A cidade de Antuérpia foi escolhida, como uma justa homenagem 
                à heróica resistência de sua população, 
                durante a invasão das tropas alemãs em território 
                belga.
              O 
                exército alemão em seu avanço pela Europa 
                ocupou a Bélgica e destruiu todas as instalações 
                militares do exército belga, inclusive os seus estandes 
                de tiro. Este fato, como veremos mais adiante, trouxe inúmeros 
                problemas para a organização das provas de tiro 
                e para os atiradores.
              Os 
                efeitos causados pela Guerra ainda estavam muito visíveis. 
                A Bélgica tinha sofrido bastante com a longa ocupação 
                e obviamente não estava preparada para sediar e organizar 
                uma Olimpíada. Contudo, graças à persistência 
                do Rei Alberto, grande desportista, foi possível realizar 
                a Olimpíada. Em menos de um ano foi construído o 
                estádio Olímpico, com capacidade para 30.000 pessoas, 
                e que se transformaria no palco dos principais acontecimentos 
                desportivos.
              5. 
                Cerimônia de Abertura
                No dia da Abertura dos Jogos, com a presença do Rei Alberto, 
                vestido com uniforme militar, foi lido pela primeira vez o juramento 
                olímpico por um atleta belga, sendo repetido com grande 
                entusiasmo pelos 2600 atletas presentes, representando as 29 nações 
                inscritas.
              A 
                Bandeira Olímpica também foi hasteada pela primeira 
                vez, com os seus cinco anéis coloridos entrelaçados, 
                simbolizando a união do mundo (cinco continentes) através 
                do esporte e as cinco cores representando as bandeiras de todos 
                os países.
              Estava 
                também presente o barão Pierre de Coubertin, idealizador 
                dos Jogos, prestigiando o evento ao lado do Rei Alberto e de outras 
                autoridades do Comitê Olímpico Internacional.
              O 
                público presente que lotava o estádio aplaudiu com 
                muita emoção a passagem dos grandes campeões 
                de Olimpíadas passadas, além das equipes mais conhecidas. 
                E foi com muita admiração e simpatia que os belgas 
                aplaudiram uma equipe que vinha de tão longe para participar 
                pela primeira vez de uma Olimpíada – a equipe brasileira, 
                desfilando garbosamente e tendo como seu porta-bandeira, um oficial 
                envergando o tradicional uniforme do Exército Brasileiro, 
                o Tenente Guilherme Paraense.
              6.Treinos 
                em Beverloo
                Os atiradores e o capitão da equipe ficaram instalados 
                em barracas de oficiais subalternos, “em que uma cama de 
                ferro, uma bacia de folha e uma mesa de pinho, constituíam 
                toda a mobília. Em todo caso era bem limpo e a gentileza 
                do capitão De Smetts e do tenente Waetts tudo fizeram para 
                nos facilitar” 
              “Cada 
                país ocupava normalmente duas barracas dispostas em linhas 
                ao longo de uma avenida. A bandeira de cada país concorrente 
                era hasteada diariamente em frente às suas barracas. Uma 
                cantina situada no meio das barracas de “justiça” 
                (apuração), encarregava-se de servir as refeições 
                aos qtiradores e dirigentes: o café era servido a partir 
                das 07:00 horas, ao preço de 1 fr e 75 cents; o almoço, 
                ao meio-dia e o jantar às 18:00 horas, ao preço 
                de 3 fr e 50 cents”.
              Afrânio 
                prossegue em seu relatório: “Chegados que fomos. 
                Dirigi-me à secretaria para as necessárias instruções, 
                interessando-me mais que os outros quaisquer ao “exercício 
                diário” (treinamento) da equipe. Indagando então 
                sobre o local, hora, condições, etc, obtive a seguinte 
                resposta”:
                - “Podem exercitar-se em qualquer lugar!” 
              “Fiquei 
                na mesma e insisti se não havia alvos trincheiras, marcadores, 
                enfim, o necessário para um rigoroso preparo do tiro. A 
                resposta deu-me a idéia nítida do concurso:
                - Em virtude dos alemães terem destruídos os estandes, 
                aprova seria em “campo aberto”, implicando na ausência 
                de qualquer tipo de auxílio por parte do Comitê do 
                Tiro durante os treinamentos, cabendo ao atirador a responsabilidade 
                do seu próprio material, inclusive alvos.
              Fiquei 
                logo inteirado acerca da ação dos dirigentes do 
                concurso. Nessa mesma noite, procurei aproximar-me dos americanos, 
                cujo conforto era notável e não necessitavam mendigar 
                esmolas do seu governo para seu sustento. Era o único recurso 
                para remediar os desfalques que houvéramos sofrido em alvos 
                e munições. 
              Lane 
                e Braeken, dois famosos campeões, jogavam uma partida de 
                xadrez: fui “peruar” o jogo e, as folhas tantas, arrisquei 
                uma opinião na partida e eles acharam boa. Daí por 
                diante entraram em franca camaradagem e no final da noite já 
                me haviam dado mil cartuchos 38, mil balas 22 e 50 alvos, material 
                expressamente fabricado para o concurso.
              No 
                dia imediato ao da chegada, ciente de que já estava da 
                carência absoluta de material para o exercício, procurei 
                o capitão De Smetts, afável e gentil oficial do 
                24º Regimento de Infantaria e dele consegui um soldado para 
                fazer sete toscos suportes para alvos. Às 08:00 horas da 
                manhã, sem a menor orientação sobre o local 
                onde nós deveríamos instalar, entregues unicamente 
                à minha iniciativa de chefia de equipe, partimos para o 
                Campo sob uma chuva persistente e copiosa. A 3 Km de distância, 
                marchando à pé, através de um caminho arenoso, 
                sem qualquer veículo que nos transportasse e carregados 
                de armas, cavaletes, alvos, munições, etc, chegamos 
                ao local. Aí deparamos com a equipe portuguesa treinando, 
                como a instalação ficara ao nosso arbítrio, 
                instalamo-nos a seu lado. 
              O 
                Campo de manobra de Beverloo estava situado a 3 km, da estação 
                Bourg-Leopold (local do acampamento dos organizadores e dos atiradores). 
                Era uma vasta planície arenosa, que se estendia por 38 
                km na direção da Holanda, chegando até suas 
                fronteiras. No lugar destinado às provas, não havia 
                abrigos ou árvores, onde nos intervalos dos exercícios 
                pudéssemos descansar.
              Após 
                instalados, iniciamos os preparativos para o exercício. 
                E como não houvesse marcadores, nem ao menos trincheiras, 
                éramos nós obrigados a nos revezarmos junto aos 
                alvos, expondo a vida a perigo a cada instante, e perturbando 
                o companheiro que atirava, na inquietação constante 
                que tal situação lhe inspirava. 
              O 
                tempo entrara em aliança contra os atiradores; um vento 
                frio e cortante obrigava, de quando em vez, a interromper o tiro 
                para aquecermos as mãos, esfregando uma de encontro à 
                outra. E como não houvesse abrigos, ali ficamos até 
                uma hora da tarde, expostos às intempéries. A essa 
                hora viemos almoçar no acampamento, para voltar ao Campo 
                às 15:00 horas e lá ficarmos até a “boca 
                da noite”. 
              E 
                assim continuamos com a maior regularidade os exercícios, 
                diariamente, até a realização das provas”. 
                
              
              
              
               
                 
              
                por Eduardo Ferreira
                Recordista e campeão brasileiro de armas longas da CBTE 
                e das Forças Armadas. Ex vice-presidente da CBTE e da federação 
                do DF, ex presidente das federações do RJ e CE, 
                e diretor das federações da PB e RS. Autor de "Arma 
                Longa" e "História do Tiro"
                ferreiraedu@terra.com.br